Fim do longo século, era o ano de 1928. Nem parecia que há 40 anos boa parte da vitória fora alcançada. Agora, numa época mais branda, quatro sombras do passado de reencontram.
Há meses anunciou-se uma reunião a fim de comemorar os 40 anos da abolição. O dia 13 de maio de 1928 prometia uma grande festa de muitas lembranças. Em meio aos vestidos, às taças e à música, quatro senhoras de idade são deixadas por seus filhos e netos numa mesa. Suas vistas já estavam encobertas pela catarata, suas colunas cansadas e suas mentes confusas viviam uma meia vida, presa entre as lembranças e a realidade. O silêncio reinava na mesa e só era quebrado pelo “larari” da música. Foi então que uma voz rouca, da mais mulata das senhoras, fala e recebe respostas: “Não há refeição sem feijão!”
- Não tem batuque sem tambor.
- Não há dança sem pés no chão.
- Não tem festa sem comemoração.
Mais silêncio.
Depois de um tempo, a senhora que cabelos que já foram castanhos e olhos cor de mel, sai de sua cisma e pensando em voz alta responde num sussurro típico da voz cansada: “Mas hoje é dia de festa! Por que é festa mesmo? Não me lembro, mas sei que é coisa boa. Tem alguma comemoração. Santa Mãe, o que era? Não consigo lembrar. Não importa! A festa está ruim mesmo. Me arrumo e saio de casa pra isso. Sou muito mais as festas que os negros davam lá no terrero. Papai não me deixava ir dançar com eles, porque pensava que eles não tinham alma, mas eles tinham sim. Eu sempre dava um jeito de fugir e era muito bom”.
A senhora mais branca de todas como se despertá-se de um cochilo declara: “Terrero! Eu me lembro disso. Está tudo tão confuso na minha cabeça, mas eu me lembro disso”.
A última senhora, que era uma mulata muito magra, ainda não havia participado muito da conversa, parecia dormir, mas num gesto cansado levanta a cabeça e fala: “Eu só me lembro de uma coisa nessa vida, aprendi quando jovem um verso de Castro Alves com uma irmã minha, uma irmã do coração. É assim:
‘Eu sou como a garça triste
Que mora a beira do rio.
As orvalhadas da noite me fazem tremer de frio.
Me fazem tremer de frio como os juncos da lagoa.
Feliz a araponga errante que é livre, que livre voa.
Que é livre, que livre voa para as bandas do seu ninho.”
A mulata calou a fala porque começou a chorar. As outras respiravam lentamente e buscavam nas mentes alguma lembrança ou algo que as fizessem entender tudo o que acontecia. Foi então que a senhora dos olhos de mel, que se chamava Melissa, teve um insite. “Não chore. Eu me lembrei porque estamos hoje aqui. Estamos comemorando a abolição. Estamos comemorando o fim das garças tristes e o vôo das arapongas. Agora me lembro. Me lembro da minha vida. Você quer ouvir minha história?”.
- Claro, claro. Adoro histórias. Minha irmã branca sempre contava para mim. Vamos, vamos. Agora fiquei curiosa.
- Então não derrame uma lágrima. Senão não conto.
Meu nome é Melissa e sou filha de um fazendeiro muito rico. Tenho uma irmã chamada Gabriela. Nós crescemos na fazenda, que era bem afastada da cidade. Por isso nunca tivemos muitas amigas e nossa escolaridade foi dada por nossa tia que morava conosco porque era uma solteirona.
Conheci, desde que me entendo por gente, duas escravas de dentro: Zefina e Joquima. Nós quatro vivíamos juntas. Meus pais detestavam essa convivência, mas no fim chegaram à conclusão de que não fazia mal, afinal não tínhamos outras crianças para brincar. Mas não sabia ele como essa amizade ia crescer. Papai vivia sempre ocupado, tinha muitas viagens de negócio e mamãe era fácil de enganar, era muito ingênua a coitadinha.
Toda noite que tinha festa dos negros, Joquima dava um jeito de nos levar escondida. Nas primeiras vezes os escravos estranharam, cochicharam e acabou chegando aos ouvidos de papai que deu uma coça na Jô e na Zefa. Ele nos proibiu de vê-la e elas ficaram duas semanas na senzala. Mas conseguimos fugir e encontrá-las. Estavam horríveis, com as costas marcadas e mal conseguiam falar. Cresceu em meu peito uma revolta tão grande. Uma mistura de ódio com coração magoado. Eu só deveria ter dez anos e fiz meu primeiro ato abolicionista. Fui até em casa peguei o chicote de papai e mandei Gabi me amarrar no tronco e bater. Ela começou a chorar. Falou que nuca faria isso. Então peguei o chicote, rasguei a parte de trás do meu vestido e comecei e me bater. Quando o feitor do meu pai viu, eu já estava cheia de sangue. Ai, ai... isso foi comentado por toda a fazenda e chegou até na cidade. Foi a primeira grande vergonha do meu pai.
Crescemos, as quatro, sempre tentando livrar os escravos dos castigos. A Zefa e a Jô foram ganhando regalias. Tivemos a mesma educação praticamente. A tia topou dar aulas para nós quatro, sem meu pai saber, é claro. Quando ficamos adolescentes conhecemos um senhor sócio do meu pai que sempre ia lá em casa. Certo dia, ele descobriu a nossa incompreensão frente às idéias escravocratas porque entramos agarradas para dentro de casa devido a um soco que dei na cara de um capataz que tentou abusar da Jô. Então, em segredo, ele nos deu um livro de Castro Alves. Passou pelas quatro e ficamos apaixonadas. A partir desse dia esse senhor sempre nos trazia livros abolicionistas em segredo. Aprendemos mais sobre a causa e suas idéias.
Como já éramos moças começamos a freqüentar mais a cidade com papai e íamos até a algumas festas. Às vezes, depois de muita briga, o convencíamos a deixar Zefa e Jô virem como nossas damas de companhia. Mas as moças e rapazes da cidade eram muito diferentes. A maioria era esnobe, mesquinha e, o pior: preconceituosa. Achavam-se muito superiores e muitas vezes faziam piadas com nossas amigas. Mal sabiam eles que elas já tinham lido muito mais do que todos juntos e que eram mais prendadas do que qualquer uma das garotas. Zefina, que sempre foi mais delicada, sabia até tocar piano, porque eu ensinava as escondidas e ela tinha muito jeito.
As coisas iam de mal a pior na fazenda. Foi contratado um novo feitor porque o outro foi morto pelos escravos numa rebelião. Confesso que fiquei bem chocada na hora, mas não podia deixar de compreendê-los. Acontece que o novo feitor era o verdadeiro cão. Não agüentávamos mais toda aquela briga. Papai chegou a ponto de nos agredir, pensando que a Gabi e eu tinhamos os estimulado.
Nossa tia casou com o moço que nos dava livros abolicionistas. Foi contra a vontade de meu pai e ela saiu praticamente fugida. Logo em seguida minha mãe adoeceu e em menos de dois meses morreu. Já éramos jovens, eu deveria ter uns 18 anos. Não havíamos casado porque nossa fama de garotas pervertidas abolicionistas havia se espalhado. Agora com a morte da mamãe ficamos desprotegidas naquela casa e papai ainda falou que nos arrumaria um casamento em breve. Quando negavamos, ele nos batia e ameacava vender Zefina e Joquima.. Havia chegado a hora. Nós quatro começamos a arrumar uma maneira de fugir dali. Sempre fomos tão boas nisso, não é agora que não conseguiríamos. Arrumamos as malas, deixamos escondidas, juntamos todas as jóias da mamãe - sabíamos a senha do cofre, dinheiro não seria o problema, agora só faltava a oportunidade. E ela veio. Inesperadamente papai anunciou que meu marido chegaria daqui a uma semana para me conhecer.
Ele era de São Paulo, logo pensei que era essa a explicação desse casório. Ele não sabia como eu era. Ele não sabia que eu fazia parte do quarteto das pervertidas, das garotas sem freio que se metiam a discutir política. Mas papai fez questão de tirar minhas esperanças, falou que o rapaz já sabia tudo sobre mim, que ele fez questão de contar tudinho e que mesmo assim o pedido foi aceito. “Esse moço é realmente escravocrata, depois do casamento ele te deixa nos eixos” dizia ele.
Eu só não sabia que Deus escreve certo por linhas tortas. Pensamos em tentar fugir antes da chegada do tal noivo. Mas outro problema surgiu, Gabi estava apaixonada. Pelo Zé, um escravo. Ele cresceu com a gente, mas nunca desconfiamos de nada. Ela decidiu que não iria mais. Começamos a desanimar. Como deixaríamos todo a senzala para trás? Quem seria a única esperança de proteção se fossemos embora? Os dias se passaram e acabou chegando o tal noivo. Mais foi tudo diferente do que eu imaginava. Papai me deixou na varanda com meu futuro marido enquanto ia conversar com o pai do noivo. Sentei afastada dele e o tratei o mais ríspida possível. Ele apenas ria um sorriso enviesado.
- Meu nome é Tiago. O seu é Melissa não é? – mas eu não respondia a nada do que ele falava, foi então que ele se virou, olho bem dentro dos meus olhos e disse:
“Sobre o barco dos amores,
Da vida boiando à flor,
Douram teus olhos a fronte.
Do Gondoleiro do amor.”
- Castro Alves? Você o conhece? – perguntei perplexa.
- Mais do que você pensa...
Desse encontro ganhamos um novo aliado e eu ganhei minha paixão. Com ajuda dos colegas abolicionistas do Tiago, planejamos a fuga. Mas dessa vez era a fuga de todos, não só de nós quatro.
Foi no dia de nosso casamento. Todos estavam na cidade e o feitor de meu pai foi para acompanhá-lo, papai se sentia muito desprotegido depois do assassinato do outro feitor. Como num sonho, deu tudo certo. Todos pegaram a estrada da montanha. Mas eu e Tiago fomos apenas depois da festa do casamento e nos encontramos do outro lado do morro. Acho que papai só se deu conta que havíamos fugido quando chegou no outro dia a fazenda, pois trancamos todos os capatazes na senzala. Fomos para o quilombo Anhanná. Tiago e seus amigos já conheciam o lugar e as pessoas. Sem mais planos ficamos morando por lá. Foi uma vida, sem luxos, mas foram os meses mais felizes da minha vida.
Chegamos no quilombo mais ou menos em janeiro de 1888 e a abolição saiu dia 13 de maio. Posso esquecer de tudo nessa vida, mas desse número nunca vou esquecer. Foi a festa mais linda que já teve em Anhanná. Depois disso Tiago e eu fomos morar no Rio. Gabriela, Jô e Zefina ficaram.
Chegando lá tive a surpresa de saber que nossos nomes tinham aparecido em muitos jornais abolicionistas. “As quatro abolicionistas”, “ Mulheres defendem a causa” e até em jornais comuns “Eu não queria ter uma filha dessas”, “Mulheres fora do controle”, “É o fim dos tempos”.Tiago assumiu os negócio do pai, foi um excelente administrador, contratou italianos e alguns ex-escravos. Todos eram bem remunerados e tudo foi prosperando. Sempre mandávamos dinheiro para o quilombo e fiquei sabendo que Gabriela se mudou para o nordeste e estava prosperando. Ouvi o boato de que Zefa e Jô saíram do quilombo. Zefa casou com um músico e viviam uma vida simples e Jô casou com o dono de um jornal abolicionista e até estava escrevendo artigos. Ficamos tão distantes. Nunca mais nos vimos. Fomos perdendo o contato. Mas nunca me esqueci de quatro pulseirinhas iguais, feitas de grãos e sementes que Zefina fez para nós no quilombo. Prometemos nunca tirar e nunca esquecer de nossa amizade, de nossas conquistas, de nossa fraternidade. Juramos nunca esquecer que somos arapongas e que a nossa liberdade é feita por nós mesmas.
As senhoras aos prantos foram levantando as mãos e viram quatro pulseirinhas. Como não se reconheceram? Era fácil entender e difícil compreender. Estavam caducando, mal enxergavam, mas tem coisas que a gente não se esquece jamais. Tem marcas que cicatrizam, mas nunca desaparecem. Assim foi a escravidão em nossa história. Uma chibatada.
As velhinhas criaram uma força sobrenatural. Levantaram e se abraçaram entre lágrimas. Zefa gritou bem alto: “Essa festa ta chata por demais, minha gente. Vamos levantar poeira no terrero!”. E as quatro começaram a cantar uma canção africana bem agitada e a dançar. A música parou e todos olhavam para elas. Perplexos, ninguém entendia que a maior sabedoria está a um passo da caduquice.
Professora, as senhoras estão no séc. XX, mas o enredo principal é do séc. XIX, ok? Bj
segunda-feira, 25 de junho de 2007
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Era uma vez o sax...
O sax foi criado no séc XIX. Justamente o séc. que estou estudando lá na escola (CMPA). Foi um cara, que eu queria ter conhecido muito, que o criou, seu nome era Antoine Joseph Sax, mais conhecido como Adolph Sax, ele era da Bégica. Seu pai se chamava Charles Joseph Sax e era uma carpinteiro que construiu uma fábrica para instrumentos de sopro de madeira e instrumetos de metal. Como "filho de peixe, peixinho é", Adolph também era um gênio criativo e cheio de técnica, como seu pai.
Mas Adolph não se contentou com tão pouco e começou sua educação musical na Royal School of Singing (Bruxelas), um lugar muito longe para mim, tipo seria um sonho ter estudado com essa classe. Lá ele aprendeu flauta e clarinete.
Foi por volta de 1840, que baseado numa mistura de clarinete, tuba e fagote, nasceu o primeiro sax, um sax-baixo, que posteriormente veio a originar toda a família, principalmente o Sax-alto, meu bebê.
O sax só foi exibido em 1844 na "Paris Industrial Exibicion".
Isso é só uma amostrinha da história do melhor instrumento do mundo. Esses dados foram tirados de vários lugares, porque eu li muito antes de começar a tocar sax, mas são muito verídicos, podem crer. Tenho mais muitas curiosidades e dicas, até algumas partituras. Vou colocando aos poucos. FaLô.
Um comentário:
Sil, teu telefone tá funcionando? Eu não consigo te ligar!! Vê o e-mail que eu te mandei. BJS. P.S.: Não mudei muita coisa,só algumas palavras. Tá a mesma coisa
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